O sócio cristão de Elie Horn
Ele visita favelas e não fecha mais contratos aos sábados. Aos 44 anos, o empresário Fábio Cury tornou-se o trunfo da poderosa Cyrela para conquistar o mercado de baixa renda no Brasil — o mais promissor da atualidade
Entre os empresários de ascendência árabe residentes no Brasil, o engenheiro Fábio Cury é, provavelmente, um dos menos religiosos. Nenhum objeto na sede de sua empresa, a Cury Construtora e Incorporadora, localizada em São Paulo, evoca o lado cristão do Líbano, país de origem de sua família. Embora tenha sido batizado, feito a primeira comunhão e casado na igreja, Cury faz parte do grupo dos autodenominados “católicos não praticantes”. A última vez em que se confessou com um padre foi há mais de 20 anos. Como tantos brasileiros, ele só pisa numa igreja hoje para assistir a missas de sétimo dia, batizados e casamentos. Mas nos últimos dois anos Cury se tornou rigorosamente obediente a determinados preceitos religiosos — não aos dele, mas aos do empresário sírio de fé judaica Elie Horn, dono da Cyrela, a maior incorporadora e construtora do país. Desde que Horn se tornou seu sócio, em 2007, Cury fez algumas adaptações na maneira de conduzir sua empresa. A principal delas diz respeito ao sistema de vendas. Da tarde de sexta-feira ao pôr do sol do sábado, assim como acontece na própria Cyrela, nenhum negócio é fechado. Nesse período, todos os 124 funcionários de Cury são proibidos de assinar contratos e receber cheques, mesmo correndo o risco — por sinal, alto — de perder a venda. No mercado imobiliário, 40% dos negócios são fechados aos sábados. “Fiquei preocupado por achar que perderíamos negócios”, diz Cury. “Mas deu certo. Os clientes ficam impressionados com a postura de respeito à religião e assinam o contrato nos outros dias.”
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Fora o respeito ao shabbat, existem poucas semelhanças entre os modelos de negócios de Cyrela e Cury. Uma fatura 2,8 bilhões de reais. A outra, cerca de 150 milhões de reais. Uma dedica-se à alta renda. A outra especializou-se em atender a clientela da classe C. A parceria, porém, é estratégica para a Cyrela de Horn. Com a ajuda da Cury, a empresa pretende entrar — e preferencialmente dominar — no mercado imobiliário de baixa renda, a atual obsessão das incorporadoras e construtoras brasileiras. Dos 20 000 imóveis que a Cyrela espera lançar para o segmento popular até o final de 2009, a Cury deve responder por cerca de 50%. Depois de um período de ganhos nos imóveis de alto e médio padrão, o público de baixa renda tornou-se estratégico para a companhia de Elie Horn. A expectativa é que esse mercado represente cerca de 40% das vendas totais da Cyrela em 2009 e atinja, já no ano que vem, mais da metade das vendas. “Com a parceria da Cury, temos um modelo de empresa que pode nos ajudar a construir um negócio para fazer frente aos principais concorrentes do mercado”, diz Antônio Guedes, diretor-geral da Living, a divisão da Cyrela voltada para a classe C.
Desde sua fundação, em 1962, a Cury construiu mais de 15 000 imóveis populares em São Paulo. São casas que custam entre 52 000 e 130 000 reais, destinadas a famílias com renda média mensal de seis salários mínimos. A familiaridade que a empresa tem hoje com essa clientela é função direta do empenho de Cury. Aos 44 anos, ele está na empresa desde 1991, quando foi chamado pelo pai, Elias. Desde então, desenvolveu um sistema peculiar de trabalho. Antes do lançamento de seus condomínios, costuma se reunir com líderes comunitários para discutir as necessidades da região. A cada 20 dias, Cury visita favelas, quando procura vivenciar um pouco da rotina de seu público e entendê-lo melhor. Não raro, ele estende o “processo de aprendizagem” aos executivos de empresas parceiras. Faz parte do roteiro uma visita à loja da Cury no shopping Itaquera, localizado na periferia de São Paulo. O percurso é feito de trem e metrô, um trajeto que leva cerca de 1 hora. “O objetivo é fazer o parceiro conhecer e experimentar as dificuldades vividas pelos clientes, como viajar diariamente em transporte público, em pé, em vagões lotados”, diz Felipe Pedroso, diretor de marketing da Elite, divisão imobiliária do grupo de propaganda Eugênio, um dos fornecedores da Cury.
Além das incursões exploratórias, Cury e sua empresa acumularam conhecimento em uma área nevrálgica para quem deseja explorar o mercado de baixa renda no país: os meandros da Caixa Econômica Federal, a principal fonte de financiamento de imóveis populares do país. Embora o banco estatal tenha eliminado dezenas de exigências recentemente, o processo de concessão de crédito ainda é tortuoso. São necessários cerca de 50 procedimentos para aprovar um financiamento. Com essa quantidade de papéis, a concessão de um empréstimo pode levar até seis meses. A Cury domina como poucas a estrutura de funcionamento da Caixa Econômica. “O banco é uma estrutura gigante, que não se reformulou na mesma proporção do aumento do crédito”, diz João Crestana, presidente do Secovi, entidade que representa o setor imobiliário de São Paulo. “As empresas que já conhecem a estrutura e os critérios da instituição têm vantagens sobre quem começa agora.” A CEF diz que, com as mudanças de simplificação na estrutura, o prazo deve cair para 45 dias.
A convivência entre sócios de uma companhia pode ser difícil, especialmente quando o controle é dividido meio a meio. Para que a parceria entre a Cyrela e a Cury desse certo, os dois lados montaram um modelo que procura dividir as responsabilidades de cada um na operação. Em certa medida, a atuação da Cyrela na Cury pode ser comparada à de um fundo de private equity. No acordo de acionistas, cabe à Cyrela a direção financeira da companhia. Com maior escala de construção e maior poder de negociação, a empresa de Elie Horn coordena a captação de recursos em bancos privados para financiar empreendimentos e rolar o capital de giro. A Fábio Cury fica destinada a gestão da operação. Ele é responsável pela procura de terrenos, pelo desenho dos projetos residenciais e pelo relacionamento com a Caixa Econômica Federal. Até agora, passados dois anos do início da parceria, o modelo de divisão de tarefas tem funcionado. Os riscos, porém, são grandes. “Numa sociedade 50%-50%, há sempre a possibilidade de que uma disputa por poder ou uma discordância sobre uma decisão estratégica comprometam o resultado do negócio”, afirma Haroldo Vale Mota, professor de finanças da Fundação Dom Cabral.
Empresas do setor imobiliário voltadas para a baixa renda, como a Cury, vivem um momento de grande expectativa no país. Isso se deve basicamente ao programa Minha Casa, Minha Vida, lançado pelo governo no início do ano. O programa prevê subsídios de 34 bilhões de reais, juros mais baixos e prazos de financiamento maiores para famílias de baixa renda. O plano prevê o financiamento de 1 milhão de casas até 2010. Até meados de julho, foram aprovados financiamentos para 134 empreendimentos, ou 18 700 moradias. Apesar da demora na aprovação de projetos, os incorporadores estão eufóricos. Na incorporadora MRV, por exemplo, cerca de 80% das vendas de 850 milhões de reais registradas no segundo trimestre deste ano foram contratadas no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida. “Definitivamente, o Brasil passou a olhar para esse mercado”, diz Rubens Menin, fundador e presidente da MRV, a maior empresa do segmento de baixa renda do país. Diante dessa perspectiva, Elie Horn e Fábio Cury pretendem fechar muitos negócios nos próximos meses. Mas nunca aos sábados.
Por Denise Carvalho